Os Nazarenos e a “Arca de Remédios”

Os Nazarenos e a “Arca de Remédios”

Por Tsadok Ben Derech

Quando escrevemos o livro “Judaísmo Nazareno”, demonstramos como os netsarim (nazarenos) foram perseguidos no início de sua formação, inferindo-se daí que muitas de suas obras se perderam nas brumas da História.

Poucos registros antigos existem sobre os nazarenos, sendo que muitos deles foram subscritos por seus opositores. Por conseguinte, devem ser vistos com certa reserva.

Não obstante, ainda que documentos redigidos por inimigos terminem por atacar injustamente os netsarim (nazarenos), são de extrema relevância do ponto de vista histórico, porquanto podem reconstituir as características e crenças originais dos primeiros talmidim (discípulos) de Yeshua.

Nesta senda, uma obra fundamental é “Panarion”, escrita entre 374 a 377 DC, de autoria do bispo Epifânio de Salamina, que viveu entre 310 (ou 320) a 403 DC. Trata-se o livro de um compêndio acerca de diversos grupos considerados heréticos pela Igreja Católica[1], incluindo inúmeras facções do Judaísmo e do próprio Cristianismo. Epifânio descreveu os grupos religiosos e comparou cada um com uma espécie diferente de animal venenoso, explicitando como o veneno era produzido e como precaver-se da peçonha. Eis o porquê do nome “Panarion”, que literalmente significa “arca de remédios”.

São valorizadas pelos cristãos a vida e a obra de Epifânio a ponto de este ser considerado “santo” e “Pai da Igreja”, tanto por parte da Igreja Católica Apostólica Romana quanto por parte da Igreja Ortodoxa.

Em Panarion, Epifânio dedicou o capítulo XXIX a combater o grupo dos “netsarim” (nazarenos). Sem embargo de sua obra menosprezar os netsarim, haja vista que defende as doutrinas da Igreja Católica, é de assaz relevância para fornecer subsídios acerca das concepções fulcrais dos judeus seguidores de Yeshua HaMashiach.

Neste trabalho, destacar-se-ão as características fundamentais dos netsarim, consoante a narrativa de Epifânio. Ei-las.

1) Os primeiros talmidim de Yeshua eram chamados de nazarenos (netsarim), e não de cristãos

Panarion[2], capítulo XXIX[3]

“1:2.  Porque essas pessoas não se dão o nome do Mashiach ou o próprio nome de Yeshua, mas são chamados de “nazarenos” [netsarim].

1:3. Mas naquela época todos os cristãos da mesma forma foram chamados de nazarenos.

4:10. Em qualquer caso, eles tinham recebido este nome [nazarenos] antes de serem chamados de cristãos” (o grifo é nosso).

Com efeito, inicialmente, todos os discípulos de Yeshua eram conhecidos como netsarim (nazarenos), conforme o texto de Atos 24:5. Tanto judeus quanto gentios estavam unidos em um só corpo, alcunhados de netsarim. Somente na cidade de Antioquia é que os discípulos foram chamados de “cristãos” pela primeira vez (Atos 11:26), e isto por volta dos anos 40 a 60 D.C. Enquanto em Antioquia os seguidores do Messias foram apelidados de “cristãos”, em todos os outros lugares se manteve o nome original: netsarim (nazarenos). Posteriormente, o nome “cristãos” expandiu-se dentre discípulos de língua grega, também praticantes do Judaísmo, até assumir um significado distinto, qual seja, os adeptos de uma nova religião instituída no século II: o Cristianismo.

Segundo as lições do erudito Ray A. Pritz, da Universidade de Jerusalém, judeus e gentios crentes em Yeshua eram conhecidos como “nazarenos”, e somente muito tempo depois houve uma distinção terminológica entre nazarenos e cristãos (Nazarene Jewish Christianity, The Magnes Press, The Hebrew University, 1992, páginas 15 a 17). Eis a citada distinção terminológica: o nome “nazarenos” continuou a designar os discípulos de Yeshua praticantes do Judaísmo, enquanto o vocábulo “cristãos” passou a se referir aos membros da nova religião denominada Cristianismo.

Logo, a assertiva transcrita de Epifânio comprova a tese de que originalmente os discípulos de Yeshua eram chamado de “nazarenos”, e não de “cristãos”, surgindo este nome posteriormente.

2) Origem do nome “Nazarenos” (Netsarim)

Panarion, capítulo XXIX

“5:6. Porque, ouvindo apenas o nome de Yeshua e vendo os milagres realizados pelas mãos dos apóstolos, eles chegaram à fé em Yeshua. E descobriram que ele tinha sido concebido em Nazaré [Netsaret] e cresceu na casa de José [Yosef], e por esta razão é chamado de ‘Yeshua, o Nazareno [Natsri]’, no Evangelho, como os apóstolos dizem: Yeshua, o Nazareno [Natsri], um homem aprovado por sinais e maravilhas (Atos 2:22). E assim por diante, eles adotaram este nome, e deste modo foram chamados de nazarenos.

6:2 Mas, além disso, como já referi, todos chamavam os cristãos de nazarenos, como disseram ao acusar o apóstolo Paulo: ‘Nós descobrimos que este homem é uma peste e um corruptor do povo, um líder da seita dos nazarenos’ (Atos 24:5).

6:5 E não é de admirar que o apóstolo [Paulo] admitiu ser um nazareno! Naqueles dias, todos os cristãos eram chamados disso [nazarenos], por causa da cidade de Nazaré; não havia nenhum outro uso do nome na época. E as pessoas davam o nome de nazarenos para os crentes no Messias, de quem está escrito: porque ele será chamado de ‘Nazareno’ ”(Mt 2:23) (o grifo é nosso).

Conclusão: externam os excertos que o Mashiach era chamado de Yeshua, o Nazareno, e daí os seus seguidores passaram a ser conhecidos como “nazarenos”.

3) Após a morte e Yeshua, o primeiro líder dos nazarenos foi Ya’akov (“Tiago”), e não Kefá (Pedro)

Em que pese a Igreja Católica Apostólica Romana afirmar que “o primeiro Papa foi Pedro”, tal assertiva é manifestamente falsa. Em verdade, a liderança dos netsarim, após a morte de Yeshua, recaiu sobre Ya’akov HaTsadik (“Tiago, o Justo”), irmão do Mashiach, conforme leciona Epifânio (Panarion, capítulo XXIX, 3:9).

Esta informação é ratificada por Hegésipo, escritor nazareno do segundo século, consoante citação de Eusébio de Cesareia:

“Sucessor na direção da Kehilá [Congregação] é, junto com os apóstolos, Ya’akov [‘Tiago’], o irmão do Senhor. Todos dão-lhe o sobrenome de ‘Justo’ [HaTsadik], desde os tempos do Senhor até os nossos, pois eram muitos os que se chamavam Ya’akov [‘Tiago’]. Mas somente este foi santo desde o ventre de sua mãe. Não bebeu vinho nem bebida fermentada, não comeu carne; sobre sua cabeça não passou tesoura nem navalha…” (Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, editora Novo Século, 2002, página 47).

Relata Epifânio que Ya’akov HaTsadik foi nazir (nazireu) desde o seu nascimento, consagrado ainda quando estava em vente materno (Panarion, capítulo XXIX, 4:2)[4].

4) Os nazarenos eram judeus e praticantes do Judaísmo, e não do Cristianismo

Panarion, Capítulo XXIX

“7:1. (…) e nem eram chamados de cristãos, mas de nazarenos, supostamente a partir do nome do lugar “Nazaré”. Mas eles são judeus em todos os sentidos e nada mais”.

5) Os nazarenos praticavam a Torá e seguiam as mesmas doutrinas da religião judaica

Panarion, Capítulo XXIX

“7:2. Eles [os nazarenos] não só usam o Novo Testamento, mas o Antigo Testamento, tal como os judeus o fazem. Pois eles não repudiam a legislação, os profetas, e os livros que são chamados de Escritos pelos judeus e por si mesmos.

Eles não têm pontos de vista diferentes, mas confessam tudo em pleno acordo com a doutrina da Lei [Torá] e como os judeus, exceto que eles são supostamente crentes no Messias.

7:5. Eles são diferentes dos judeus e diferentes dos cristãos, apenas no seguinte: eles discordam dos judeus porque chegaram à fé no Messias; mas são distintos dos verdadeiros cristãos, porque praticam os ritos judaicos da circuncisão, a guarda do sábado [shabat], e outros” (o grifo é nosso).

Tanto os nazarenos quanto os judeus tradicionais extraíam suas doutrinas básicas do Tanach (Primeiras Escrituras), que em certo ponto eram similares. Isto não obsta a existência de divergências acerca de determinados tópicos. Verbi gratia, Yeshua criticou certas tradições dos p’rushim (Yochanan Marcus/Marcos 7). Contudo, judeus nazarenos e judeus não-crentes em Yeshua compartilhavam da doutrina de que a Torá é o alicerce da religião de ambos os grupos – o Judaísmo. Consequentemente, os judeus nazarenos possuíam a mesma visão doutrinária dos demais judeus, consoante o escólio acima citado de Epifânio: “Eles não têm pontos de vistas diferentes”.

Parece que a guarda da Torá pelos nazarenos incomodava os cristãos, que apregoavam a revogação da Lei. Tal dissidência entre nazarenos e cristãos, existente até hoje, é constada nas críticas de Epifânio aos judeus nazarenos:

Panarion, Capítulo XXIX

“8:1 Mas eles [os nazarenos] também estão errados por se vangloriar da circuncisão, e pessoas como eles ainda estão sob uma maldição, pois não conseguem cumprir a Lei [Torá]. Pois como eles serão capazes de cumprir a disposição da Lei [Torá]: Três vezes por ano tu deves comparecer perante o Senhor teu Deus, nas festas dos pães ázimos, Tabernáculos e Pentecostes, em Jerusalém?

8:2. Porque, assim como o lugar está fechado, as disposições da Lei [Torá] não podem ser cumpridas…”.

Alude a citação supra ao fato de o Beit HaMikdash (Templo) ter sido destruído pelos romanos no ano 70 DC. Então, Epifânio usou o seguinte raciocínio: “se não existe mais Templo, como os nazarenos poderão celebrar as três festas em que a Torá determina a peregrinação a Jerusalém?”

Ora, todos os judeus religiosos, crentes ou não em Yeshua, continuam celebrando normalmente as festas bíblicas prescritas pela Torá, excetuando-se as regras relativas ao Templo, visto que este não mais existe. Não se trata de invalidação da Torá, mas tão somente de inaplicabilidade de regras ante a impossibilidade prática de cumpri-las. Assim sendo, nenhuma maldição há, já que ninguém pode ser condenado por não fazer o impossível!

Destarte, fica latente o zelo dos nazarenos pelo cumprimento dos mandamentos da Torá, contrapondo-se aos cristãos, que se opunham à observância da Lei.

6) Os Nazarenos eram contrários à Teologia da Substituição

Panarion, capítulo XXIX

“3:7 Mas, com a transferência do trono real, o posto de rei passou, em Cristo, desde a casa física de David e Israel para a Igreja. O trono é estabelecido na Santa Igreja de Deus para sempre…”.

4:8 Porque seu trono subsiste, seu reino não terá fim, e ele está sentado no trono de David, e transferiu o reinado de David, concedendo-o, juntamente com o sumo sacerdócio, aos seus servos, os sumos sacerdotes da Igreja Católica”.

Epifânio sustenta que o trono de David foi transferido para a Igreja Católica, que assumiu o papel outrora destinado a Israel, o que é uma das facetas da Teologia da Substituição.

Defende a maligna Teologia da Substituição a tese de que no “Novo Testamento” os cristãos substituíram os israelitas nas promessas feitas pelo ETERNO. Afirma que os judeus negaram Yeshua e, por isso, foram rejeitados por YHWH, que elegeu a Igreja para ocupar o lugar que antes pertencia ao povo de Israel. Esta teologia ensina: 1) que o “Novo Testamento” substituiu o “Velho Testamento”; 2) a Igreja substituiu Israel e 3) a graça substituiu a Lei; 4) o Cristianismo substituiu o Judaísmo.

Na citada passagem de Epifânio, evidencia-se claramente a Teologia da Substituição, e que seu autor a usou para tecer críticas aos nazarenos. Infere-se daí que os judeus nazarenos discordavam totalmente da Teologia da Substituição, porquanto criam fervorosamente que: 1) o Tanach (“Antigo Testamento”) permanece em vigor; 2) Israel não foi substituído pela Igreja; 3) a graça sempre existiu nas Primeiras Escrituras[5] (Tanach); o Judaísmo não foi substituído pelo Cristianismo.

7) Os nazarenos professam que o “Novo Testamento” foi redigido em língua semita, e não em grego

Relata Epifânio que os nazarenos liam os livros do Tanach (Primeiras Escrituras/“Antigo Testamento”) em hebraico:

Panarion, Capítulo XXIX

“7:4. Eles são perfeitamente versados na língua hebraica, pois toda a Lei [Torá], os profetas, e os chamados Escritos, quero dizer, os livros poéticos, Reis, Crônicas, Ester e todo o resto, são lidos em hebraico entre eles, o que é evidente, pois eles estão entre os judeus”.

Quanto aos Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos/“Novo Testamento”), também há a menção expressa no sentido de que o livro de Matityahu (Mateus) foi escrito em Língua Hebraica:

Panarion, Capítulo XXIX

“9:4. Eles têm o Evangelho segundo Mateus totalmente em Hebraico, pois é claro que eles ainda preservam este como foi originalmente escrito no alfabeto hebraico” (o grifo é nosso).

Este registro é confirmado por relatos mais antigos dos “Pais da Igreja”.

Escreveu Papias, provavelmente dentre os anos 95 a 120 DC, acerca da origem semita de Matityahu (Mateus):

“Mateus compôs suas palavras no dialeto hebraico” (citado por Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, 3:39)

Já no ano 180 DC, testificou Irineu:

“Mateus também publicou o Evangelho escrito dentre os hebreus em seu próprio dialeto” (Contra as Heresias 3:1)

Orígenes, que viveu entre 184 a 253 DC, afiança:

“O primeiro Evangelho foi escrito segundo Mateus, o mesmo que era coletor de impostos, mas que se tornou emissário de Yeshua HaMashiach; quem publicou para os crentes judeus, escrevendo-o em Hebraico” (citado por Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, 6:25; o grifo é nosso).

Já no tocante aos demais livros dos Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos/“Novo Testamento”), apesar de Epifânio não concordar com a origem hebraica, assevera que certos judeus defendiam que Yochanan (João) e Ma’assei Sh’lichim (Atos dos Emissários) foram escritos em Língua Hebraica (Panarion, Capítulo XXX, 3:7-9). Não obstante serem mencionados apenas estes dois livros, tendo em vista que a enumeração de Epifânio foi exemplificativa, e não exaustiva, pode-se deduzir que outros livros do “Novo Testamento” também circulavam no idioma hebraico, e que muitos judeus criam que os originais foram compostos nesta língua, e não em grego.

Destarte, há prova concreta no sentido de que Matityahu (Mateus) foi escrito em hebraico, e indícios de que os outros livros dos Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos/“Novo Testamento”) também foram redigidos no mesmo idioma.

Curial sublinhar que, antigamente, a palavra “hebraico” (ivrit/עברית), tanto significa “hebraico” quanto “aramaico[6]. Eis a razão da ambivalência do vocábulo: antes do cativeiro babilônico, os israelitas falavam hebraico. Quando foram levados cativos, incorporaram também o aramaico, a língua falada na Babilônia. Assim, quando retornaram do cativeiro babilônico para Israel, muitos judeus falavam hebraico e aramaico, enquanto outros somente se comunicavam em aramaico, pois nasceram na Babilônia e foram alfabetizados nesta língua.  Assim sendo, as duas línguas faladas pelos hebreus eram chamadas de “hebraico”, quais sejam, o hebraico e o aramaico.

Logo, quando os “Pais da Igreja” afirmaram que o livro de Matityahu (Mateus) foi escrito em “hebraico”, poderiam estar se referindo tanto ao hebraico propriamente dito quanto ao aramaico. Isto leva com que vários estudiosos das línguas semitas defendam teses diversas acerca da composição do “Novo Testamento”:

1ª Tese:  todos os livros do “Novo Testamento” foram escritos em hebraico (Jeff A. Banner);

2ª Tese:  todos os livros do “Novo Testamento” foram compostos em aramaico (Paul Younan, Andrew Gabriel Roth, George Lamsa);

3ª Tese: alguns livros do “Novo Testamento” foram escritos em hebraico, enquanto outros foram redigidos em aramaico (James Trimm, Tsadok Ben Derech).

Independentemente da divergência entre os pesquisadores, fato é que todos concordam que os Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos/“Novo Testamento”) não foram escritos em grego, e que os manuscritos neste idioma são traduções dos escritos semitas.

8) A aparição sobrenatural de Yeshua aos netsarim e a fuga de Yerushalayim (Jerusalém)

Dentre os anos de 66 a 73 DC, ocorreu a revolta dos judeus contra seus dominadores romanos, cujo resultado foi a vitória de Roma, sendo destruída Yerushalayim (Jerusalém) no ano 70 D.C. Nesta guerra, relata o historiador Flávio Josefo que foram mortos pelos romanos um milhão e cem mil judeus, e que noventa e sete mil judeus se tornaram prisioneiros (História dos Hebreus, CPAD, 8ª edição, 2004, página 1429).

Antes da guerra, registrou Flávio Josefo que apareceu um profeta chamado Yeshua, alertando que viria “desgraça sobre Jerusalém”, mas que o povo não deu crédito à sua pregação (Ob.Cit., página 1415). Tal Yeshua não se confunde com Yeshua HaMashiach, esclarecendo-se que o nome “Yeshua” era bastante comum no primeiro século.

Ainda escreveu Josefo:

“Se quisermos considerar tudo o que acabo de dizer, veremos que os homens perecem somente por própria culpa, pois não há meios de que Deus não se sirva para procurar-lhes a salvação e manifestar-lhes por diversos sinais o que eles devem fazer” (Ob. Cit., página 1416).

E o que tudo isto tem que ver com os nazarenos? Ora, Epifânio de Salamina asseverou que, antes da destruição de Jerusalém, Yeshua HaMashiach apareceu de forma sobrenatural aos nazarenos (netsarim), avisando-lhes sobre a tragédia que abateria a cidade, e por isto os nazarenos escaparam de Jerusalém antes do cerco efetuado pelos romanos. Então, fugiram inicialmente para a cidade de Pella, e depois se estabeleceram em Peraea [Pereia], conforme relata Epifânio:

Panarion, Capítulo XXIX

“7:8 Pois este é o local de origem, uma vez que todos os discípulos tinham se estabelecido em Pella após a sua remoção a partir de Jerusalém, pois o Mashiach lhes tinha dito para abandonar Jerusalém, retirando-se, por causa do cerco que estavam prestes a sofrer. E eles se estabeleceram em Peraea por este motivo e, como eu disse, viveram suas vidas lá. Foi a partir disso que a seita dos Nazarenos teve a sua origem” (o grifo é nosso).

No mapa abaixo, destacamos Jerusalém, Pella e Peraea:

Como se verifica, apesar da fuga dos netsarim de Yerushalayim (Jerusalém), continuaram sediados na terra de Israel no primeiro século.

Já no quarto século, quando Epifânio escreveu Panarion, disse que os netsarim (nazarenos) estavam sediados na Síria (= Celessíria), em Decápolis e em Bashan:

Panarion, Capítulo XXIX

“7:7 Esta seita dos Nazarenos pode ser encontrada em Beréia perto de Celessíria, em Decápolis perto de Pella, e em Bashanitis (Bashan), no lugar chamado de Cocabe, Kochav em hebraico”.

Todos estes lugares estão situados na Terra de Israel, excetuando-se a Síria, vizinha de Israel pela fronteira do norte. Então, isto demonstra que no quarto século os netsarim (nazarenos) habitavam em Israel (Decápolis e Bashan) e em suas adjacências (Síria).

Eis os mapas indicando a localização geográfica de tais lugares:

SÍRIA

DECÁPOLIS

(Decápolis significa “10 cidades”, sendo que quase todas elas estão na Terra de Israel)

BASHAN

9) Os netsarim (nazarenos) foram perseguidos pelos judeus não-crentes em Yeshua

Inicialmente, os judeus nazarenos e os judeus tradicionais se reuniam naturalmente nas mesmas sinagogas. Com efeito, o livro de Atos demonstra inúmeras ocasiões em que Sha’ul (Paulo) se reuniu com seus irmãos judeus em sinagogas (Atos 13:14,15, 43; 14:1; 17:1,10,17; 18:4, 8 etc). Na carta de Ya’akov (“Tiago”), este se refere expressamente ao ingresso em sinagogas:

“Porque, se um homem entrar em sua sinagoga…” (capítulo 2, verso 2, traduzido do aramaico).

Porém, Yeshua profetizou que um dia os nazarenos seriam expulsos das sinagogas:

“Eles os expulsarão das sinagogas…” (Yochanan/João 16:2)

Uma das causas do afastamento dos nazarenos das sinagogas tradicionais foi a instituição da “Birkat HaMinin” (literalmente “Bênção dos Hereges”). Apesar de o nome ser “benção”, tratava-se de uma verdadeira maldição lançada pelos judeus tradicionais contra os nazarenos, que eram chamados de “hereges” . Entre os anos 80 a 90 D.C, nas sinagogas frequentadas por nazarenos e fariseus, estes acrescentaram a seguinte “bênção” na amidá:

“Que os sectários e os nazarenos  morram em um instante se não retornarem para Ti e para a Tua Torá. Que eles sejam apagados do livro da vida e não sejam inscritos entre os justos”. 

Sobre a citada maldição, comentou Moshé Ben Shaul:

“Ora, os Nazarenos obedeciam sim à Torá, só que não da maneira farisaica. Esta ‘bênção’ foi inserida para separar os Nazarenos do Judaísmo tradicional. Ao contrário do restante da Amidá, que era feita silenciosamente e de forma bem suave, esta ‘bênção’ tinha que ser recitada em alto e bom som. Se você fosse um Nazareno, teria como opções deixar a sinagoga ou amaldiçoar a si mesmo. Isto, é claro, separou os Nazarenos dos fariseus ainda mais, porém até certo ponto ainda havia diálogo entre eles até a metade do 2º século e alguns deles podem ser lidos no Talmud.

Entre a destruição do Templo em 70 D.C e a revolta de Bar Kochba cerca de 135 D.C, o cisma entre os fariseus e os Nazarenos continuou a crescer…”.

Já que seria muito difícil que os nazarenos amaldiçoassem a si mesmos, supõe-se que abandonaram as sinagogas em que a citada “bênção” era proferida.

Então, ficou tenso o clima entre os fariseus e os nazarenos, já que ninguém gosta de ser chamado de “herege”. Aumentou o conflito quando os fariseus determinaram a queima dos “Livros dos Minim” (o Ketuvim Netsarim /“Novo Testamento”), conforme se verifica no Talmud, Tratado de Shabat 116a:

“As margens e os livros dos Minim [hereges = nazarenos] não podem ser salvos, mas devem ser queimados em seu lugar”.

De fato, os nazarenos foram expulsos das sinagogas e os fariseus queimaram muitos dos Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos/“Novo Testamento”), o que demonstra grande rancor por parte destes. Tal fato também é ratificado por Epifânio de Salamina:

Panarion, Capítulo XXIX

“9:2 No entanto, para os judeus eles [os nazarenos] são inimigosNão só o povo judeu tem ódio contra eles; eles [os judeus tradicionais] se levantam de madrugada, ao meio-dia, e perto da noite, três vezes por dia, quando eles recitam suas orações nas sinagogas, e amaldiçoam e reprovam-nos [os nazarenos], dizendo três vezes por dia: Deus amaldiçoe os nazarenos.

9:3. Pois guardam um rancor contra eles, porque, apesar de sua origem judaica, pregam que Yeshua é o Mashiach, algo que é o oposto daqueles que ainda são judeus e não aceitaram Yeshua” (o grifo é nosso).

Epifânio ressalta que os nazarenos também são judeus, pois possuem “origem judaica”, mas que foram tratados com ódio por parte dos próprios irmãos. Todavia, os nazarenos sempre amaram e continuarão a amar os seus irmãos judeus, visto que um dia todos estarão juntos proclamando que Yeshua é o Mashiach de Israel.

10) Os nazarenos foram perseguidos pelo Cristianismo

Ao final da dissertação de Epifânio, este compara os nazarenos com insetos que, apesar de pequenos, provocam dor com seu veneno (Panarion, capítulo XXIX, 9:5). Tal assertiva demonstra o ódio dos “Pais da Igreja” em relação aos nazarenos.

Já que os nazarenos pregam a validade da Torá, crença esta totalmente oposta à professada pelo Cristianismo, inimigo que é da Torá, ao longo dos séculos os cristãos têm perseguido os nazarenos. Tal perseguição não é apenas no campo das ideias, mas envolve o derramamento de sangue de nazarenos, exterminados pelos cristãos pelo fato de serem judeus, guardarem o shabat (sábado) e praticarem os mandamentos da Torá.

Basta lembrar que as Cruzadas e a Inquisição, promovidas pela Igreja Católica, exterminaram milhões de judeus, sendo certo que parte destes judeus eram nazarenos.  E não só os católicos são antissemitas, o “Pai” do Protestantismo Martinho Lutero exalou tanta ojeriza aos judeus que suas teses foram posteriormente adotadas por Adolf Hitler para justificar o nazismo. Confiram-se as palavras do próprio Martinho Lutero, considerado herói pelos protestantes evangélicos:

“Que devemos, pois, fazer, nós cristãos, com esse povo rejeitado e amaldiçoado dos judeus? […] Não podemos apagar o inextinguível fogo da ira divina […] nem converter os judeus. Com oração e temor a Deus devemos exercer uma misericórdia afiada, para porventura salvar alguns das chamas e do braseiro. Nós não devemos nos vingar. Eles já estão com a vingança ao pescoço, mil vezes pior do que lhes podemos almejar.

Quero, [porém,] dar [às autoridades políticas] meu conselho fiel. Por conseguinte, não pode nem deve ser para nós cristãos uma brincadeira, mas matéria de grande seriedade buscarmos conselho contra essa realidade, a fim de salvarmos nossas almas dos judeus, isto é, do diabo e da morte eterna. E [o conselho] é este, como dito acima:

Primeiro: Que se incendeiem suas sinagogas, e, quem puder, jogue enxofre e piche. E quem pudesse também lançar fogo infernal, seria igualmente bom. A fim de que Deus possa ver nossa seriedade e todo o mundo tal exemplo, de modo que se até agora temos tolerado em ignorância tais casas (em que os judeus têm blasfemado tão vergonhosamente contra Deus, nosso querido criador e pai, com seu Filho), agora lhes temos dado sua recompensa.

Segundo: Que se lhes tomem todos os seus livros — livros de oração, escritos talmúdicos, também toda a Bíblia —, sem deixar uma folha sequer, e que sejam preservados para aqueles que se converterem. […]

Terceiro: Que lhes seja proibido, sob pena de perderem o corpo e a vida, de louvar a Deus, dar-lhe graças, orar, ensinar publicamente entre nós e em nosso país. Podem fazê-lo em seu próprio território ou onde o puderem, sem que nós cristãos precisemos ouvi-lo ou disso tomar conhecimento. […]

Quarto: Que lhes seja proibido pronunciar o nome de Deus em nossos ouvidos, pois nós não podemos ouvi-lo ou tolerá-lo de boa consciência. […] E quem ouvi-lo de parte de algum judeu, denuncie-o à autoridade ou lhe atire excremento de porco quando o vir, afugentando-o. Ninguém seja misericordioso ou bondoso nesse particular, pois estão em jogo a honra de Deus e a salvação de todos nós” (Martinho Lutero in “Dos judeus e de suas mentiras”; o grifo é nosso).

Fizemos esta citação para demonstrar que o espírito do antissemitismo não só esteve presente no início do Cristianismo, conforme se percebe nos escritos de Epifânio, como também se estendeu durante séculos e séculos, e foi albergado por Lutero, ícone do Protestantismo, bem como por diversos líderes cristãos.

Seis milhões de judeus (nazarenos ou não) foram mortos no holocausto nazista, e o antissemitismo continua pulsante nos dias de hoje.

O que a humanidade aprendeu? A humanidade aprendeu que ainda não aprendeu nada!

Conclusão

À guisa de conclusão, mister destacar, em proposições objetivas, os principais fatos concernentes aos nazarenos registrados na obra Panarion, do Bispo Epifânio de Salamina, bem como os comentários bosquejados neste artigo:

1) os primeiros discípulos de Yeshua eram chamados de “nazarenos” (netsarim), e não de cristãos;

2) o nome “nazarenos” é uma homenagem a Yeshua, o Nazareno;

3) somente muito tempo depois surgiu o nome “cristãos”;

4) com a morte de Yeshua, a liderança dos nazarenos passou a ser exercida por Ya’akov (“Tiago”), e não por Kefá (Pedro);

5) os nazarenos eram judeus e sua religião era o Judaísmo, e não o Cristianismo;

6) seguiam os nazarenos as mesmas doutrinas da religião judaica, cujo fundamental central é a Torá, e nisto pensavam tal como os judeus não-crentes em Yeshua, excetuando-se a crença em Yeshua HaMashiach;

7) os nazarenos criam na validade da Torá e, por isso, guardavam o shabat, realizavam a circuncisão, e cumpriam os demais mandamentos da Torá de YHWH (festas bíblicas, alimentação kasher etc);

8) não criam os nazarenos na Teologia da Substituição, razão pela qual pensavam que o Tanach está em vigor; Israel nunca foi substituído pela Igreja; a graça sempre existiu nas Escrituras; o Judaísmo não foi substituído pelo Cristianismo;

9) é certo que os nazarenos usavam o livro de Matityahu (Mateus) em “hebraico”, palavra que tanto pode significar hebraico quanto aramaico, havendo indícios de que outros livros do “Novo Testamento” também tenham sido compostos em língua semita (hebraico e/ou aramaico);

10) os nazarenos foram perseguidos por judeus não-crentes em Yeshua, sendo expulsos das sinagogas, recebendo maldições e tendo seus livros queimados pelos fariseus;

11) o espírito do antissemitismo está presente desde os primórdios do Cristianismo, e por tal motivo os nazarenos foram perseguidos pelos cristãos.

 

 


[1] Utilizamos a palavra “Católica” com o antigo sentido de “Universal”, compreendendo todas as Igrejas Cristãs, e não à instituição organizada que posteriormente recebeu o nome de “Igreja Católica”.

[2] Confira o texto on line de Panarion em https://www.masseiana.org/panarion_bk1.htm.

[3] Colocamos interpolações pessoais entre colchetes.

[4] Outro famoso nazir (nazireu) registrado por Epifânio foi Yochanan HaMat’bil (João, o Imersor; “João Batista”), em Panarion, capítulo XXIX, 5:7.

[5] Palavras como “graça” e “misericórdia” aparecem mais de 250 vezes no Tanach (Primeiras Escrituras/ “Antigo Testamento”).

[6] Neste sentido, confira “Ruach Quadim”, Andrew Gabriel Roth, 2005, páginas 28 e 29.

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